PARASHAT BO
O debate judaico sobre a natureza da vontade humana
O nome da parashá Bo em hebraico significa “venha”, este nome é derivado do primeiro versículo desta porção da Torá no qual Deus instrui Moshé para vir falar com o faraó e avisa-lo à cerca da oitava praga, a dos gafanhotos. E mesmo com mais essa praga o faraó não mudou de ideia e permitiu que o povo israelita escravizado fosse libertado da opressão e pudesse sair do Egito. O faraó se mostrou mais uma vez obstinado em seu orgulho tirânico, apesar do custo que as diversas pragas tiveram sobre seu país e seu povo.
Mesmo antes que Moshé tivesse voltado ao Egito, Deus já tinha lhe avisado que sua tarefa de porta voz do movimento de libertação não seria fácil. “Eu vou endurecer o coração do faraó, de tal forma que ele não permitirá que o povo vá embora” (Êxodo 4:20). Deus parece avisá-lo que manipularia a vontade do faraó. Contudo, no decorrer da narrativa podemos notar que era o próprio faraó quem estava endurecendo seu próprio coração. Mesmo assim o texto reiteradamente parece afirmar o contrário. A narrativa diz que após cada uma das últimas pragas é Deus quem faz o coração do faraó endurecer. Como assim, era o faraó quem obstinadamente não permitia a libertação do povo ou era Deus quem lhe manipulava a vontade, sendo o rei do Egito uma mera marionete da história já pré-determinada desde sempre? Ao se depararem com a narrativa, os priemreiros rabinos não se sentiram confortáveis com a possibilidade de, por causa dessa interferência divina no livre arbítrio do faraó, o sofrimento pelo qual ele e o Egito passaram fosse uma injustiça. Se era Deus quem tornava duro o coração do faraó, argumentavam os rabinos, então, como seria possível responsabilizar o faraó pelos seus atos?
Com relação a essa questão, há uma variedade de possíveis respostas. Olhando o texto de um ponto de vista literário, a contínua recusa obstinada do faraó de libertar os escravos hebreus, apesar da intensificação das pragas, parece tão anormal que somente a intervenção divina manipulando sua vontade poderia explicar sua atitude. Por esse ponto de vista, Deus estaria a usar o faraó, como uma marionete com intenção de aumentar sua glória no final da história. Quanto mais pragas ocorrem, quanto maiores os milagres como a travessia do mar, maior será a percepção do poder divino entre os libertos quando estiverem diante do Monte Sinai. Outro ponto de vista literário entende que a intenção da narrativa ao dizer se referir ao endurecimento do coração do faro é apenas mostrar a supremacia constante de Deus e nada mais.
Entre os primeiros rabinos temos a famosa passagem do tratado da Mishná Pirke Avot (Os Capítulos dos Pais), composto de aforismos sapienciais e éticos, onde é encontrado o dito atribuído ao tanaíta rabi Akiva (século II): “Tudo está previsto, (contudo) a escolha é permitida”[1]. Esta máxima é claramente assentada numa aparente contradição, pois se tudo está previsto, isto é determinado por Deus, como então poderia haver livre arbítrio? Como os dois princípios poderiam coexistir no mundo? Esse problema animou o debate judaico desde pelo menos o primeiro século da Era Comum. Sobre isso temos o testemunho de Flávio Josefo, que em diversas passagens de sua obra, afirma que uma das características da corrente dos fariseus era buscar uma posição intermediária entre a afirmação radical do livre arbítrio, professada pelos saduceus e o duro determinismo afirmado pelos essênios.
Entre os medievais, a discussão dessa passagem se deu no contexto do debate acerca da possibilidade do ser humano poder ser ou não dotado de livre-arbítrio, o que lhe faz responsável por seus atos que, no entanto, contradiz a afirmação teológica de se que Deus conhece tudo, e, portanto, já sabe de antemão as decisões que os homens tomarão na história. Maimônides foi um daqueles que tentaram resolver essa contradição. Em seu comentário sobre acerca da vontade humana, ele reinterpretou o sentido do texto: “Pode acontecer às vezes que os pecados de uma pessoa sejam tão graves que ele é penalizado de tal modo que não lhe é dada a oportunidade para que possa vir a se arrepender se sua iniquidade. Dessa forma essa pessoa morre carregando o pecado que cometeu. O faraó pecou inicialmente por sua própria vontade, com seu próprio livre arbitro, até que lhe foi confiscada a oportunidade de se arrepender” (Yad, Teshuvá, 6:3). Assim como outros aristotélicos medievais, Maimônides é um naturalista realista, para quem tudo estaria submetido à necessidade da relação entre causa e efeito de tal modo que na natureza não há nenhum ato que não seja causado por outro, assim em geral não poderia haver livre-arbítrio, as duas únicas exceções seriam Deus, que é livre por sua essência e o ser humano, que recebe o livre arbítrio por “reshut” permissão especial.
Outra solução foi proposta por Gersonides para resolver o problema da contradição entre livre-arbítrio especialmente o problema da presciência divina. Gersonides sugeriu que Deus conhece as escolhas possíveis de que teremos diante de nós, mas não sabe qual a escolha específica que faremos. Para Abner de Burgos, por outro lado, tudo já estaria predeterminado e, portanto, não haveria lugar para a vontade humana. Outro comentador medieval, Hasdai Crescas, entende que a vontade humana é por um lado psicologicamente condicionada a causas anteriores, sendo a deliberação fruto da junção do desejo com a imaginação, assim, apesar da vontade não ser livre de modo absoluto, pois, há sempre uma determinação ligada a causas anteriores, mesmo assim, devemos distinguir um ato de vontade de um ato feito sob coação, pelo fato de que o ato de vontade é sentido pela pessoa que age como deliberação interna. O faraó tinha uma psicologia arrogante e enquanto sentiu que não tinha perdido completamente o controle se manteve obstinado, as pragas, por outro lado, vieram num crescente e não todas de uma vez, dando lhe a impressão de que as coisas voltavam sempre ao seu controle. Outro exemplo histórico, Luis XVI só chamou os Estados Gerais quando a situação na França tinha chegado no limite, mas aí já era tarde de mais para o Antigo Regime.
Do livro Yakult Meam Loez, escrito por Yaakov Kuli, nós aprendemos quem em um certo número de situações o arrependimento é muito mais difícil. 1) Quando uma pessoa cometeu vários pecados muito sérios. 2) Quando a falta foi propositalmente repetida muitas vezes. 3) Quando alguém escolhe arrepender-se e por obstinação recusa-se a fazê-lo. 4) Quando alguém ofende seriamente outro ser humano.
A resistência do faraó parece lógica para você? O que faz com que uma pessoa seja tão obstinada? Alguma vez em sua vida você já sentiu que era difícil reconciliar-se com alguém?
Shabat Shalom,
Rabino Alexandre Leone
Coordinador Pos Graduacion en Estudios Judaicos,
Sao Paulo
Unisal- Seminario
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[1] Mishná Pirke Avot 3:15
LA PARASHÁ EN VIDEO:
Un proyecto conjunto entre el Seminario, Masorti Olami y la Asamblea Rabínica:
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